Desvio, erro, anomalia, má formação, agramaticalidade, enunciado não aceitável. São muitos os termos usados para designar a classe de ocorrências de discurso que levam ao equívoco, ao estranhamento, a distúrbios de decifração, compreensão ou aceitação. Existem outras ocorrências que levam a efeitos similares e nem por isso são consideradas desvios, como os ruídos e os recursos retóricos.
A caracterização do desvio requer um qualificador a mais: a reprovação. Desvio é o distúrbio comunicativo reprovado. Para o estudo gramatical importam os desvios formais. Quando alguém fala que uma afirmação está errada, ainda não está caracterizado o desvio linguístico, pois o que o falante considerou erro pode ser causado no plano do conteúdo e não no da expressão.
O estudo do desvio linguístico deve começar com algumas perguntas: desvio para quem? De que proporção? Em que contexto? De fato, não existe desvio absoluto, unânime, líquido. O que é desvio para um falante não o é para outro. O que causa estranhamento a fulano, não causa a beltrano. O que é reprovado por um grupo não o é, por outro.
Além do mais, os falantes situam os desvios numa escala de aceitabilidade ampla e elástica. Alguns desvios são considerados leves, outros, severos e inaceitáveis. E para completar: a tolerância e a aceitabilidade do desvio variam dependendo do contexto. O desvio que é tolerado e aceito em uma situação pode ser reprovado duramente em outra.
Existem muitos tipos de desvios que ocorrem em todos os níveis da análise linguística, seja fonológico, ortográfico, sintático, semântico, pragmático, estilístico, etc. Alguns tipos merecem destaque como ambiguidades, solecismos, impropriedades e os desvios conotativos.
A aceitabilidade está interligada com o desempenho do falante. Em certos casos, uma construção pode ser aceitável para uma pessoa e inaceitável para outra, porque a primeira tem um domínio melhor do idioma do que a segunda. Um vocábulo inaceitável para uma pessoa pode ser aceitável para outra que possua um vocabulário mais amplo.
A aceitabilidade de frases gramaticais cai à medida que se exige maior esforço de decifração e compreensão do falante. Frases longas, parentéticas, com encaixes e remissões podem ser julgadas como inaceitáveis ao falante menos atento e, dependendo das exigências de processamento da frase, até os falantes mais preparados passam a considerá-la inaceitável.
Em função das limitações da aceitabilidade associadas a desempenho é que em nosso trabalho vamos supor sempre o falante ideal. Esse falante, em princípio, tem o domínio pleno da competência do idioma e seu desempenho se situa no limiar superior além de não ser afetado por contingências externas.
A ambiguidade é a possibilidade de mais de um sentido válido para um só enunciado em dado contexto. Na ambiguidade, a opção por um dos sentidos possíveis é uma questão que não pode ser decidida. A ambiguidade pode ocorrer por lapso ou por intenção. Vejamos alguns tipos de ambiguidades:
Um enunciado pode ser ambíguo num contexto e não o ser em outro. A frase João, o Carlos já fez a sua parte só é ambígua se no contexto em que for lançada não houver como discernir se a parte referida é a do João ou a do Carlos.
O solecismo é um caso de desvio sintático. Há três tipos de solecismo:
Solecismos de código: Há solecismos estruturais na língua como, por exemplo, na frase: Eu e ele fomos ao parque. O solecismo neste caso é uma solução gramatical convencional que se dá diante da impossibilidade de o verbo concordar com dois sujeitos díspares. Os solecismos estruturais não são considerados anômalos. Em alguns casos podem adotar o mecanismo da silepse, que consiste em concordar com a idéia associada à conjunção das partes. Exemplo: João e Paulo foram à feira. Em outros casos, a solução é meramente arbitrária.
Outro solecismo de código no português é o que envolve nomes que na origem tem um gênero mas designam conceitos a que se atribui gênero diferente. Exemplo: A populosa São Paulo. São Paulo é nome que se origina de conceito com gênero masculino, mas que se aplica a conceito do gênero feminino.
Outro solecismo de código ocorre quando o elemento é de um gênero e a classe que o contém é de outro ou quando aquilo a que é comparado é de outro. Exemplos: Ele é uma personagem e Ele é uma máquina.
Solecismo de discurso. Geralmente se restringem a alguns casos típicos. É comum o solecismo de número em que se coloca o singular no lugar do plural, o de pessoa em que se coloca a terceira pessoa no lugar da segunda, tanto que no português há uma tendência dominante para as flexões de segunda pessoa serem substituídas totalmente pelas de terceira.
Silepse é um caso especial de solecismo de concordância em que se faz a concordância com um conceito de algum modo vinculado ao termo determinante da flexão.
A impropriedade é o desvio semântico que leva a uma confusão de sentido. Em português, impropriedades comuns são as que envolvem palavras fonologicamente semelhantes como:infração e inflação.
Entre todas as modalidades de desvio que podemos catalogar, uma classe é especialmente espinhosa para o estudo gramatical: a dos desvios de inadequação conotativa. São desvios que não causam dano à decifração, à compreensão, nem levam ao equívoco. São gerados por inadequação de contexto. Vamos exemplificar considerando o seguinte diálogo hipotético:
– Ontem nóis fumo no jogo.
– Não fale nóis fumo, que está errado.
A reprovação manifesta pelo segundo falante, indica que ele viu na frase do primeiro um desvio. Não é o tipo de desvio que leva ao equívoco, à impossibilidade de decifrar a mensagem ou de compreendê-la. Qualquer falante nativo do português compreende perfeitamente a frase considerada errada pelo segundo falante.
Onde está o erro, então? A verdade é que o segundo falante julga a frase errada por considerá-la pertencente a uma variante reprovada. A rejeição não é à expressão em si, mas ao fato de ela estar ligada a aspectos culturais com quais o falante não quer identificação. Temos uma inadequação de contexto do tipo: a forma de expressão x é inadequada ao falante y.
Ao contrário de outras modalidades de desvio, que admitem um tratamento objetivo, os desvios conotativos são complexos e só podem ser abordados a contento considerando as variáveis históricas, sociais, culturais e estéticas a que se ligam. É no estudo dos desvios conotativos que a pergunta: desvio para quem? ganha status de questão central.
Conotação, ou seja, o procedimento de fazer juízo de valor acerca da forma do discurso, é praticada por todos os falantes. Do liberal ao conservador, do culto ao ignorante, do conhecedor profundo da língua ao falante mais carente, todos fazem julgamento sobre o que ouvem ou leem, não só no aspecto do conteúdo, mas também no da forma. Em resumo: todos os falantes têm uma visão própria sobre a adequação dos discursos aos contextos. Isso faz com que cada falante forme um repertório próprio de desvios conotativos. Esses desvios que cada falante enxerga são reflexo da sua história pessoal, sua formação cultural, sua personalidade, de seu meio. A visão de desvio varia de grupo para grupo, de época para época, de pessoa a pessoa.
O estudo da visão de desvio linguístico de cada agente da língua é um ramo de pesquisa muito interessante e inexplorado pela Linguística. No estágio atual dos estudos gramaticais interessa-nos especialmente a visão de desvio praticada pelos gramáticos normativos, em função do papel de agentes privilegiados da língua que eles desempenham. Embora a época da ditadura da gramática normativa já tenha passado, ainda é notável a influência que ela exerce sobre o idioma. E mesmo que no futuro os gramáticos normativos se tornem só uma lembrança nos livros de História, provavelmente outros agentes ocuparão o espaço deixado por eles, pois sempre haverá alguém disposto a assumir o papel de tutor oficial do idioma.
Autoridade dos gramáticos. A contestação atual à autoridade dos gramáticos normativos está ligada principalmente à visão destes acerca do desvio linguístico. O contraste entre a visão dos gramáticos normativos e a realidade atual do idioma mostra que a evolução da língua portuguesa não foi acompanhada pelos normativos. Nem poderia ser diferente, pois a visão de desvio dos normativos está calcada sobre um sistema de valores que preconiza a imutabilidade e a inflexibilidade. Como a visão de desvio é sempre histórica e social, somente entendendo a formação da visão dos normativos é que poderemos compreender os vetores do conflito atual que se deflagra no estudo da língua portuguesa.
A gramática normativa, como existe hoje, liga-se a uma tradição iniciada num passado distante. Poderíamos rastrear o início da formação da tradição normativa na Antiga Grécia e Índia, mas para nossos objetivos basta situarmos o marco inicial de nossa abordagem no século XIX.
O panorama linguístico do século XIX era muito diferente do atual. Predominava o isolamento linguístico entre classes sociais e entre regiões. Boa parte da população era de analfabetos, a divisão de classes sociais era mais polarizada e o intercâmbio linguístico entre classes era freado pela doutrina de segregação da classe abastada. Os meios de comunicação de massa, limitados às mídias impressas, estavam em estágio inicial de formação e as possibilidades de intercâmbio linguístico entre regiões geográficas eram bem mais reduzidas que as atuais.
O acesso à informação escrita e à escolarização eram privilégio das classes abastadas. O ensino refletia a visão aristocrática de separação de classes sociais. Era uma época em que as variantes linguísticas estavam delimitadas por fronteiras sociais e geográficas bem mais rígidas que as atuais. O sistema de valores hegemônico favorecia a criação de barreiras ao intercâmbio linguístico. Nesse ambiente, o papel esperado do gramático normativo não poderia ser outro, senão tutelar a variante linguística da classe abastada.
Cabia ao gramático normativo justificar, conservar e enaltecer a variante chamada culta, por ser a preferida da classe com acesso à escola. Nessa lógica de cultura hegemônica, soa natural considerar a variante culta como superior e as demais variantes como inadequadas, para não dizer, inferiores. Como foi concebida para ser instrumento de exclusão social, a gramática normativa do século XIX ganhou contornos típicos de confraria para iniciados. Formou-se a visão de que a boa expressão é para poucos privilegiados. Os exemplos de boa expressão passam a ser buscados nas fontes escritas mais formais e de difícil reprodução.
Contexto histórico. O contexto histórico social que moldou a gramática normativa se alterou significativamente desde o século XIX, mas os normativos, presos à lógica da imutabilidade típica da visão aristocrática do século XIX, mantiveram suas posições, exceto por alterações meramente cosméticas, ao longo do século XX. Com isso, gerou-se uma tensão crescente que nos últimos trinta anos do século XX tornou-se explícita. Vejamos agora algumas características da realidade lingüística atual, que contrasta de modo flagrante com a do século XIX:
Após o final da Segunda Grande Guerra os meios de comunicação de massa passaram por uma evolução sem precedentes. A mídia impressa cresceu, a televisão se tornou popular. A propaganda passou a ser onipresente. Na área do ensino, o acesso à escola se expandiu e se massificou, com redução do analfabetismo e aumento do número médio de anos passados na escola. A evolução das comunicações permitiu a integração territorial e a criação de mídias de alcance nacional. Na frente das idéias, surgiram correntes de pensamento fortemente reativas à visão elitista do conhecimento como privilégio de poucos. No campo das artes, proliferaram trabalhos de resgate e aproximação com a cultura popular. O somatório desses fatores históricos e sociais gerou uma tendência de distensão nas barreiras ao intercâmbio lingüístico. O clima se tornou propício ao liberalismo lingüístico uma vez que as relações sociais se tornaram mais informais e menos imobilistas.
Muitos se adaptaram aos novos ventos, mas não os gramáticos normativos, o que é compreensível, pois adaptar-se significaria negar o cerne dos valores que a gramática normativa sempre preconizou. Alguns normativos até simularam uma mudança de rumo, introduzindo alguns poucos elementos de modernidade no seu trabalho, mas sem resultado eficaz. Diante disso, criou-se o impasse que ainda está por ser desatado. Ensinar ou não ensinar gramática normativa? Defender a variante culta? Como delimitá-la? Como tratar os desvios da variante culta? Ainda levará tempo para estas questões serem resolvidas a contento, isso se fatos novos não se somarem aos atuais para complicar a situação. Mas enquanto a tensão persistir, a discussão acerca do desvio linguístico continuará a ser bastante acalorada.
Para que uma gramática seja minimamente bem sucedida, o gramático tem que se posicionar sobre a questão dos desvios. Embora nos dias de hoje muitos prefiram tangenciá-la, não há como estabelecer uma gramática consistente sem desatar esse nó. E para desatá-lo uma pergunta deve ser respondida: Afinal, a quem compete estabelecer o que é gramatical ou não, certo ou errado, aceitável ou inaceitável, preferencial ou alternativo? A questão é especialmente relevante quando tratamos da variante culta. O fato é que não importam os termos usados e as linhas de pensamento por trás dos termos, essa discussão sempre desemboca no princípio da autoridade.
Quando digo que em português culto se escreve bem-vindo com hífen, o respaldo de última instância à minha afirmativa é a abonação da autoridade. Podemos explicar uma prescrição racionalmente, apelando para a história que embasa a regra ou por de uma variedade de motivos. Mas é pela autoridade que se estabelece o certo e o errado, o aceitável e o inaceitável ou qualquer outra dualidade que distingue a forma desviada da não desviada.
No sistema da língua, todos os litígios são resolvidos pela autoridade, que a princípio não é boa ou ruim e que, como em política, se estabelece a partir de um jogo de poder sujeito a conflito e tensão.
Os falantes podem questionar a quem cabe estabelecer a regra: à tradição histórica, à alta literatura, à grande imprensa, aos gramáticos notáveis? E depois de definida a autoridade, podem ir além perguntando: Qual é a legitimidade da autoridade estabelecida?
Não importa qual tenha sido a inspiração para a criação da norma: busca da objetividade, da simplicidade, da elegância, respeito à tradição ou até mesmo razões torpes como o preconceito e o pedantismo. Respaldada pela autoridade, a norma se difunde por uma rede capilar de apoios e endossos e não se pode simplesmente ignorá-la.
Desvio linguístico é a ocorrência de discurso reprovada causada por um ou mais distúrbios de:
Quanto ao nível de análise lingüística em que ocorrem:
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