Categories: Para começar

O mito do discurso básico

Existe o mito de um discurso básico, de referência, do grau zero da escritura, de um modo normal de discursar, de um jeito natural, da linguagem essencialmente não-literária, de um discurso inespecífico, sem estilo, sem Retórica, primário.

Inespecífica é a linguagem, massa plástica informe e potencial, que dentro de certas balizas se amolda aos objetivos a que se destina. Já o discurso, é a particularização, a atualização de uma potencialidade.

O mito da ausência de estilo

O mito do discurso básico nasce a partir de duas premissas: a primeira consiste em chamar de estilo o que se julga o bom estilo e sua falta o mau estilo; a segunda é a crença de que se pode distinguir o elevado do baixo, o literário do não-literário, o belo do vulgar, unicamente a partir do uso ou não desta ou daquela forma sem atentar para sua excelência. Assim, o discurso básico geralmente é apresentado como aquele que não tem o bom estilo porque não usa as formas essenciais a este.

Foi assim na Retórica Antiga. Acreditava-se na existência de um discurso baixo desprovido de Retórica, sem as figuras de ornamentação e de um discurso elevado, se ornamentado. É óbvio que o discurso baixo era próprio da plebe e, o elevado, da nobreza. A índole aristocrática da Retórica Antiga nunca permitiu a seus seguidores enxergar que o discurso plebeu é igualmente bem ornamentado.

Modernamente surgiu o conceito de grau zero da escritura, identificado proximamente do discurso científico. Esse grau zero seria o antípoda do discurso literário. Num discurso assim seria impossível germinar a literatura. Novamente chama-se de falta de estilo não usar certas formas. Novamente o belo sendo distinguido do vulgar pelo uso ou não de formas fixas.

Figuras de ornamentação

Há também uma ideia batida de que os recursos de Retórica existem para ornamentar o discurso, tese que tem como premissa a existência do discurso nu, sem ornamentação. Para piorar, dizem que esse discurso cru é baixo ou feio, que é a presença dos ornamentos que garante a beleza e a nobreza.

Discursos sem metáfora, alegoria, hipérbato, elipse ou sem iconia, se existem, são, no mínimo, muito exóticos e raros, pois os recursos de Retórica estão presentes no discurso elevado e no baixo, no belo e no feio, e não é pela sua presença que se funda essencialmente a beleza e a nobreza.

Os recursos de Retórica não são o ornamento, são a própria matéria-prima da forma. São pau para toda obra. Servem inclusive para ornamentar. Mesmo nos discursos em que a preocupação com a forma é secundária, lá estão os recursos de Retórica, exercendo as mais diversas funções. Aqui a serviço da concisão, ali da atenuação ou agravamento, acolá da ênfase. Também existem os discursos de alto valor estético, mas pobres em recursos retóricos.

É impensável uma linguagem sem metáfora, sem elipse ou metonímia. Os recursos de Retórica não são meros ornamentos do discurso. São a própria matéria-prima da forma, são básicos e não opcionais ou supérfluos.

Linguagens racional ou da paixão

Seguindo a mesma linha de pensamento da tese do discurso básico, acredita-se na existência de um discurso desprovido de Retórica, cuja principal virtude é a clareza, e de um discurso impregnado de Retórica, cuja virtude é a opulência, a plurissignificação, em alguns casos, a obscuridade.

Implicita ou explicitamente, associa-se o discurso claro ao discurso científico, de pretensão racional. Já o discurso figurado, é associado ao poético, ao literário.

A ausência de Retórica do discurso claro deve ser lida como ausência de tropos. A presença de Retórica deve ser lida como uso abundante de tropos. Os preconceitos embutidos nesta tradição podem ser resumidos:

  • Considerar que o uso de tropos sempre prejudica a clareza.
  • Acreditar que o uso de tropos é fundamental ao poético.
  • Julgar que o uso de tropos é essencial ao discurso emotivo.

A pesada herança clássica que impregnou a Retórica de moralismo e estética precisa ser  superada para que a Retórica entre em uma nova fase.

Retórica

No meu canal no YouTube

Baixe a planilha grátis que conjuga todos os verbos do português.

Radamés

Engenheiro curitibano pela UFPR, professor e produtor de conteúdos e ferramentas educacionais para a Internet.

Share
Published by
Radamés

Recent Posts

Locativos

A classe dos locativos é fechada e compostas por palavras invariantes, não flexionadas. Comportam-se como…

55 anos ago

Artigo – classe morfológica

A classe dos artigos é fechada e formada, a rigor, por um único lexema que…

55 anos ago

Possessivos – classe morfológica

A classe dos possessivos é limítrofe. Poderia ser considerada como um caso especial da classe…

55 anos ago

Sintagmas da língua portuguesa

Os sintagmas são as unidades formais mínimas da sintaxe, ou seja, são as unidades que…

55 anos ago

Essa língua portuguesa!

A língua portuguesa não é para fracos. São tantos detalhes e exceções que resolvi fazer…

55 anos ago

Essa reforma ortográfica!

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro…

55 anos ago