Vamos abordar aqui alguns recursos retóricos que não foram tratados individualmente.
Balizas do discurso são frases que parafraseiam as funções de diversos recursos de Retórica. Alguns exemplos:
Numa leitura imediata, a silepse é uma anomalia de concordância. Uma ou mais flexões da frase discordam do termo sintaticamente ligado. Via de regra, a concordância se dá com um termo hipotético, implícito, mas previsível, que poderia substituir com pertinência o termo discordante. A substituição não causaria prejuízo à mensagem.
Na maioria das ocorrências, a silepse não é um recurso de Retórica. Ela é mais comum como anomalia e como solução para o problema de concordância dos termos compostos. Em certos casos, é difícil discernir se a silepse tem característica de recurso de Retórica ou de anomalia. Exemplo: A dupla não fez nada. Ficaram parados. Neste exemplo, não há como prever se houve intenção ou lapso.
A silepse como solução para a concordância dos termos compostos: Eu e ele fizemos tudo. Neste exemplo, o verbo não concorda com nenhum dos dois sujeitos. Concorda com a ideia de conjunto.
Existe uma pseudo-silepse que surge quando um nome pede concordância diferente da que o conceito que ele representa pede. Exemplo: A populosa e dinâmica São Paulo. O conceito cidade pede concordância no feminino. O conceito São Paulo pede concordância no masculino.
A hipálage é um recurso de Retórica ou uma anomalia do discurso? Na frase: Enfiou o chapéu na cabeça não há estranhamento. Ao contrário, quando se diz: Enfiou a cabeça no chapéu há estranhamento. Este exemplo é de uma hipálage lexicalizada que não funciona como recurso de Retórica mas como forma-padrão.
A explicação para o estranhamento talvez esteja na psicolinguística. As frases são construídas de modo a considerar algo como agente e algo paciente. Como no processo de colocar o chapéu na cabeça o deslocamento é realizado pelo chapéu sob o ponto de vista da subjetividade de quem observa o chapéu entra na estrutura da frase como agente.
A hipálage pode ocorrer como anomalia, como forma típica padrão e como recurso de Retórica. Quando ocorre como anomalia, geralmente de tempo real, a hipálage deriva de uma confusão de atribuição de funções sintáticas. As ocorrências como padrão linguístico geralmente derivam de uma anomalia que se consagrou no uso. Enquanto recurso de Retórica a hipálage tem mecanismo semelhante ao da metonímia. É uma atribuição impertinente em que o que se atribui é pertinente ao que está contíguo na estrutura da frase.
É uma frase incompleta, típica do discurso oral informal, na qual faltam termos sintáticos. Exemplo: Hum, vejamos. E se eu fizer… Não, não, quer dizer… talvez se a gente… .
Geralmente, a falta de palavras se dá no final do enunciado. Por ser sintaticamente incompleto o anacoluto é semanticamente incompleto. O anacoluto assemelha-se à elipse, que também é frase incompleta. Diferem no fato que na elipse a parte ausente é previsível. Apesar de incompleta, da frase elíptica se extrai um sentido completo.
No discurso espontâneo, o anacoluto surge em função de má codificação e por isso não é considerado recurso de Retórica. Isso ocorre porque o emissor se arrepende da solução que iniciou ou porque começou a emitir sem ter em mente o final, ou por se arrepender do que começou.
Como recurso retórico, o anacoluto ocorre quando a suspensão do enunciado é intencional e deixa a continuação apenas sugerida pelo contexto. Exemplo: ‘Para bom entendedor…’
Bloqueia-se a continuidade do enunciado para fins de atenuação, para possibilitar plurissignificação.
Na Retórica clássica há uma definição de anacoluto que preferimos arrolar como um caso particular de retomada. Exemplos:
Os termos Essas criadas de hoje, O forte e A rua onde moras são postos em destaque pela citação desligada de outros termos sintáticos. Logo depois vem a frase onde se encaixariam e onde são substituídos por pronomes. É um recurso de ênfase, não é resultado de codificação defeituosa.
Enumeração é a sequência de pelo menos dois elementos de mesmo status sintático no discurso. Há três tipos de enumeração:
Geralmente os elementos de uma enumeração são comuns a uma classe. Quando isso ocorre temos uma enumeração com paralelismo de similaridade. Hipoteticamente pode-se supor uma enumeração caótica, aquela em que os elementos são totalmente disjuntos.
Retomada é a segunda introdução de um elemento sintático, como ocorre no exemplo: ‘Os motivos são A, B e C. A porque …, B porque … e C devido à …’. A retomada se dá por motivos diversos como:
Para desenvolver o tema sem o uso de parênteses, o que prejudicaria a comunicabilidade.
Para rememorar um termo cuja determinação ficou em suspenso após uma digressão. Exemplo: ‘A Retórica que por longos séculos foi objeto de exegese, de adaptações às necessidades de época, de deturpações, esta Retórica agora …’.
Para enfatizar uma determinação. Exemplo: ‘Só um progresso importa, o progresso justo’.
O anacoluto citado pela Retórica clássica é uma forma de retomada com fim enfático. Exemplo: ‘A juventude de hoje. O que dizer dela?’
Ocorre quando um termo sintático desempenha função dupla no período. Exemplo: No meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho. (Carlos Drummond de Andrade). O termo ‘tinha uma pedra’ serve a dois adjuntos.
Ocorre quando o terceiro termo sintático tem com o segundo a mesma relação que o segundo tem com o primeiro. Exemplo:
Ocorre quando se faz uma atribuição de qualidade sobre a própria qualidade. Exemplo: É um tédio que é até do tédio. (Fernando Pessoa).
É a sequência de atribuições a um determinado, a seguinte, num grau superior ao anterior se ascendente e o contrário de descendente. Exemplo: ‘É pouco, é mais que pouco, é muito pouco, pouquíssimo.’
É a referência num mesmo discurso a objetos que mantêm uma relação de contrariedade. Um objeto referido é o oposto do outro como bom e mau, belo e feio, moral e imoral, etc. Exemplos: ‘Dizer mais com menos’, ‘A quem ama, o feio, bonito lhe parece’.
É a sucessão de partes do discurso que tem entre si uma relação de similaridade de conteúdo. Para caracterizar o paralelismo, basta apenas a citação dos contrários em partes contíguas do discurso. Neste sentido, podem ser chamados de paralelismo a equivalência de definição e o sofisma da contrariedade camuflada. A primeira é paralelismo de similaridade e a segunda de contraste.
A definição de paralelismo, aqui, é aberta, por isso nem tudo que chamamos de paralelismo tem proveito retórico. O proveito costuma aparecer quando existe uma relação adicional entre os opostos ou similares que compõem o paralelismo. Alguns exemplos de relação adicional:
Os opostos são a realidade e a aparência, o prometido e o acontecido, o que é e o que deveria ser, o esperado e o acontecido, o utópico e o pragmático, etc.
Como a definição de paralelismo é aberta, também não se considera em que condição os opostos são inseridos no discurso. Pode haver afirmação de ambos, afirmação de um ou de outro, negação de ambos ou outras possibilidades de onde também resultará também efeito retórico.
Sintaticamente, o parêntese consiste na intercalação de um trecho de discurso entre duas partes do mesmo período ou mesma oração. A parte que sucede o parêntese é a continuação da parte que o antecede.
Parêntese num nível superior ao sintático é a intercalação de um trecho de discurso entre duas partes de um segundo discurso cujo núcleo temático é diferente. Assim como no parêntese sintático a parte do segundo discurso que sucede o parêntese é a continuação da parte que o antecede.
O parêntese é uma digressão, um desvio do núcleo temático e prejudica o processamento do discurso, pois suspende uma construção para retomá-la mais adiante, obrigando assim o receptor a uma retenção provisória de termos sintáticos órfãos.
É possível o parêntese dentro do parêntese.
O parêntese pode ser usado como recurso de concisão. Uma informação é dada logo após a citação do que lhe seja correlato, evitando assim a retomada desse correlato mais tarde para introduzir a informação. Como exemplo, o enunciado parentético: ‘Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, escreveu ‘Arte Retórica”. Para substituí-lo por uma construção sem parênteses será necessário o uso de uma retomada. ‘Aristóteles escreveu ‘Arte Retórica’. Ele foi um dos maiores filósofos gregos’.
É formada por três elementos, todos explícitos: o comparado, o comparante e o atributo.
Como exemplo, algumas frases que contêm a mesma comparação:
No exemplo dado, Maria é o comparado, a beleza é o atributo e flor o comparante.
A comparação dá expressividade à atribuição. Se dissesse Maria é bela as características da beleza não estariam delineadas. O comparante atua como determinante do atributo.
As funções e a excelência da comparação são próximas às da metáfora. O objetivo de uma comparação é criar uma atribuição expressiva. Isso se obtém quando: o atributo é muito pertinente ao comparado ou quando é muito característico do comparante.
A comparação torna palpável a relação entre o comparado e o atributo nos aspectos de qualidade e quantidade.
A comparação atenua ou agrava, conforme o caso.
É o discurso semelhante a outro preexistente. A paráfrase é praticada com várias intenções:
A paráfrase pode-se dar em diversos níveis do discurso: gráfico, fonológico, gramatical, semântico, mimético e havendo semelhança de estilo, no estilístico.
Quando a paráfrase visa produzir humor, chama-se paródia.
O resumo é uma paráfrase de conteúdo, com alteração do grau de síntese.
Uma paráfrase mimética é a dos discursos que veiculam a mesma fábula.
É a admissibilidade de mais de um significado válido para o mesmo enunciado. Um exemplo: Hamlet ao responder sobre o que lia: ‘Palavras, palavras, palavras’.
Formalmente a plurissignificação é semelhante à ambiguidade. Na ambiguidade a duplicidade de significado tem efeito negativo. Não se consegue discernir qual das duas possibilidades é a válida. Já na plurissignificação, ambos os sentidos são válidos.
É um enunciado indecidível quanto à sua veracidade ou falsidade, o que ocorre em função da forma e independente de verificação externa ao discurso.
Paradoxos de Russel: Chamados por Bertrand Russel de paradoxos das classes, são proposições sobre proposições que resultam falsas quando aplicadas a si mesmas. O exemplo de Russel foi o seguinte: ‘Numa folha de papel está escrito: o que se diz no verso desta folha é falso. Ao virar a folha, no verso deparamos com a afirmação: o que se diz no verso desta folha é falso.’
Um exemplo vindo da Antiguidade: ‘Epimênides diz que todos os atenienses são mentirosos. Epimênides é ateniense, logo, o que ele diz é uma mentira e os atenienses não são mentirosos, logo …’
Os paradoxos de Russel são muito usados, em especial no discurso filosófico, o que traz problemas filosóficos mal vislumbrados, além de efeito retórico que é o nosso interesse. Alguns exemplos:
É o enunciado que resulta sempre verdadeiro, não importa a veracidade de suas variáveis. Exemplos:
Interjeições são ocorrências típicas do uso expressivo da linguagem. As características principais do uso expressivo são:
Há ocorrências de discurso totalmente expressivas e outras totalmente comunicativas. Mas também há ocorrências em que os usos se interceptam. Por exemplo:
Quando alguém dá uma topada numa pedra e solta um palavrão, temos um uso todo expressivo, pois, o palavrão não se dirige a ninguém, apenas externa um estado emocional.
Uma característica relevante da interjeição é a brevidade.
Tipos de interjeição: Há ocorrências que só aparecem no discurso como interjeições. Por exemplo: ‘uau’, ‘ai’, ‘ui’, ‘Caramba’.
Há ocorrências que ora se dão como interjeição, ora como signos do uso comunicativo. Por exemplo: ‘Puxa’, ‘Droga’, ‘ Diabos’. Neste caso há uma polissemia, em que uma das possibilidades de uso do termo é expressiva e outra comunicativa.
A origem das interjeições: as interjeições são signos e formam-se por mecanismos diversos como:
icônico. Imitam sons não fonológicos associados aos estados emocionais que externam. Por exemplo: ‘ai’, ‘ui’.
Uso de palavras tabu. As interjeições que usam palavras tabu, como os palavrões, têm a característica adicional de serem uma ruptura da sociabilidade.
As interjeições originam-se também a partir de enunciados comunicativos correlatos com o estado de ânimo em questão. Exemplo: ‘Por Deus’, ‘Nossa’, ‘Pelas barbas do profeta’. Nesses exemplos há uma mensagem presente na leitura imediata, mas veicular esta mensagem não é o objetivo da interjeição.
São os meios que se lança mão para reproduzir classes de sons não morfológicos. Exemplos típicos são vistos nos quadrinhos: ‘Bum’, ‘plaft’, ‘splash’, ‘crac’. Há ocorrências não morfológicas nos discursos escrito e oral.
É comum essas ocorrências serem símbolos. Nos quadrinhos, ‘Bang’ representa o som típico do disparo de uma arma de fogo. É símbolo mas não é signo, pois não é usado para citar o disparo mas para substituir o disparo na sua ocorrência.
As ocorrências não morfológicas, assim como os fonemas, não representam sons, mas classes de sons. Costumam ser em parte icônicas e em parte, arbitrárias. A representação perfeita geralmente não é possível, pois, os sons da fala raramente imitam com perfeição sons não fonológicos. Daí, geralmente as ocorrências não morfológicas serem símbolos verbais fonológicos não muito fiéis à classe de sons que procuram imitar.
Depois que uma ocorrência não morfológica se converte em símbolo, esta imitação imperfeita que ela realiza deixa de ser relevante, pois, a relação deixa de ser icônica para se tornar convencional.
A Retórica não se funda só no que se diz, mas também no que não se diz. Existem inúmeras regras de supressão para o discurso. Algumas notáveis:
Todas as regras de supressão relacionadas acima são típicas de algum tipo de discurso com pretensões específicas, não podendo ser encaradas como válidas em geral.
Ocorrências metalingüísticas são trechos do discurso que tratam do código que está em uso. Nestes casos é comum uma palavra ser tomada não como instrumento do código, mas como objeto, seja enquanto signo, enquanto significante ou enquanto significado. Exemplos: O que quer dizer tal palavra?Tal palavra é muito sonora.
Nas ocorrências metalinguísticas é comum ser necessária a distinção entre uso e menção. Por isso cria-se mecanismos para distinguir quando um fragmento de discurso está sendo usado ou mencionado.
No discurso escrito, os mecanismos costumam ser convenções editoriais. Por exemplo: o uso de parênteses, apóstrofos, colchetes, barras, que convencionalmente, caracterizam a condição de uso ou menção do fragmento por eles delimitado.
Tanto no discurso oral como no escrito podem ser usadas balizas metalinguísticas. Por exemplo: ‘aqui se fala da palavra ‘tal’ e não do que ela se refere’.
Uma ocorrência fática é um trecho do discurso que trata do andamento do ato comunicativo tal como:
As ocorrências fáticas são típicas do discurso espontâneo com retorno. No discurso elaborado sem retorno, as ocorrências fáticas costumam ser suprimidas.
É toda ocorrência que apaga uma ocorrência anterior.
Exemplo: ‘Você multiplica por dois, quer dizer, ou melhor, multiplique por três’.
Quando ocorre sem intenção resulta de idas e vindas do entendimento. A retificação é típica do discurso espontâneo distenso, mas há certos casos em que é praticada intencionalmente no discurso elaborado. Nessas ocorrências de retificação intencional, costuma haver alguma relação entre o que se apaga e o que lhe substitui. A relação pode ser, por exemplo, a aparência e a realidade, o verdadeiro e o falso, o pretendido e o alcançado, etc. Nesta situação a retificação ganha função crítica.
Um caso particular de retificação é a retificação gradativa, na qual o substituto é semelhante em natureza ao apagado, mas diferente em grau.
Vocativo é toda invocação do receptor. Exemplos: ‘Você, pare’. ‘ Meu caro, vê se me entende’. ‘ João, é de você que estamos precisando’.
O vocativo é praticado com função fática ou apelativa. Na função fática visa confirmar a transmissão. Na função apelativa, busca-se um ganho de intimidade pela reiteração da exclusividade do discurso, como se o receptor dissesse: é para você que estou falando.
As características a seguir, normalmente são arroladas como recursos de Retórica, mas, na verdade, são apenas propriedades desses recursos.
Sinestesia é a propriedade do discurso que gera uma associação entre uma sensação e outra sensação, ou uma impressão, ou uma situação. Exemplos:
Impressionismo: ocorre quando uma situação, sensação, ou mesmo impressão se associa a uma impressão.
Personificação: é a atribuição de características humanas a coisas não humanas. Exs: ‘tempestade furiosa’ (metáfora), ‘triste madrugada’ (metonímia).
Materialização: é o recurso que associa uma noção abstrata a algo concreto. Exs: ‘amor sólido’, ‘determinação férrea’.
Palpabilidade: é a característica do discurso que traz o conceito para a área do familiar, do mensurável, do concreto, do preciso, para o receptor.
Há muitos casos de sobreposição de característica.
Exs.: ‘Triste madrugada’ é uma metonímia prosopopéica e impressionista.
‘Amor quente’ é uma metáfora sinestésica e impressionista.
A classe dos locativos é fechada e compostas por palavras invariantes, não flexionadas. Comportam-se como…
A classe dos artigos é fechada e formada, a rigor, por um único lexema que…
A classe dos possessivos é limítrofe. Poderia ser considerada como um caso especial da classe…
Os sintagmas são as unidades formais mínimas da sintaxe, ou seja, são as unidades que…
A língua portuguesa não é para fracos. São tantos detalhes e exceções que resolvi fazer…
O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro…