Quando foi lançado, o livro didático “Por uma vida melhor” causou polêmica. Supostamente estaria assassinando a língua portuguesa e causando lesões irreversíveis nos cérebros dos jovens e adultos a quem a obra se destina. Um dos trechos do livro que causou polêmica está transcrito abaixo.
Muitas vezes, na norma popular, a concordância acontece de maneira diferente. Veja:
“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.”
… Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro?’.” Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico
O problema da frase em questão é obviamente de concordância nominal. A gramática normativa prescreve que deve haver concordância entre o artigo (os) e o substantivo que ele determina (livro) bem como entre este e os adjetivos associados a ele (ilustrado, interessante e emprestado). A gramática normativa, porém, dá conta apenas de uma parte da língua.
Sempre que falamos usamos a gramática implícita que é o conjunto de regras implantado em nossas cabeças e que nos permite decodificar as mensagens que recebemos. Esta sim é completa e complexa. A gramática implícita nos permite julgar intuitivamente as frases abaixo.
Gramática implícita. A primeira frase segue os preceitos da concordância e não precisa de maiores explicações. A segunda frase é compreensível a qualquer falante do português porque atende a uma regra da gramática implícita que diz que o plural expresso pelo artigo é mandatório quando os demais termos da frase estão no singular. A terceira e quarta frase são agramaticais porque não respeitam nem a regra da concordância integral nem a regra implícita que obriga o artigo concordar com o substantivo se o segundo estiver no plural.
Esses exemplos mostram que a gramática implícita é bem mais rica do que o conjunto de regras descritos nos livros de gramática tradicional. O engraçado é que mesmo os falantes sem escolaridade dominam sem problemas a sofisticada gramática implícita da língua.
O problema com a expressão os livro não é de gramaticalidade. Ela é compreensível para qualquer falante que domina o idioma, mas o que a diferencia da frase em que se respeita a concordância? Podemos dizer que a expressão os livro tem um custo linguístico menor, ou seja, para falar frases nos rigores da concordância gastamos mais energia; precisamos de proficiência e prontidão. Falar sem cuidar da concordância é mais fácil.
Errado para quem? Como o respeito à concordância não é uma prática generalizada, o idioma cria seus mecanismos de economia que deveriam ser encarados com mais apreço, pois são práticos e democráticos na medida que ampliam o alcance da língua a todos os falantes. A expressão os livro é reconhecida pela gramática implícita, mas não pela gramática normativa que leva em conta apenas a norma culta da língua. A expressão é errada apenas nos limites da língua padrão, pois é nesse estreita faixa que se aplicam os rótulos certo e errado.
Eu li apenas um capítulo do livro Por uma vida melhor, exatamente o que contém as afirmações polêmicas e não encontrei nada que me parecesse descabido. Fiquei inicialmente em dúvida se os autores deveriam trazer para a sala de aula a discussão sobre certo e errado, mas pensando bem todos precisam estar conscientes de como funciona a exclusão pela língua, em especial, os excluídos.
Acredito que a variante culta deve ser ensinada na escola, pois ela tem um importante papel social, mas sem esquecer que ela é uma entre várias. A discussão sobre preconceito linguístico, norma culta versus linguagem popular, certo e errado já está bem evoluída entre os estudiosos da língua e não coloca ninguém em pânico. Está na hora de esses assuntos chegarem até a população em geral. Infelizmente, quando isso acontece os velhos preconceituosos da gramática normativa saem de suas tocas para defender suas capitanias hereditárias da língua.
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