Adaptation
Direção de Spike Jonze
EUA : 2002 : 114 min
Com Nicolas Cage (Kaufman),
Meryl Streep (Susan) e
Chris Cooper (John Laroche)
Adaptação é um meta filme, quer dizer, é um filme que fala sobre a arte de criar filmes. Eu não sabia desse detalhe antes de assisti-lo e confesso que, se soubesse, talvez desistisse de vê-o. Ainda bem que não desisti. Confesso que tenho certo preconceito contra obras de arte que falam sobre o processo de produção do artista, mas vamos admitir a hipótese que autores também são seres humanos e que os dramas enfrentados por eles têm algum resquício de universalidade.
Adaptação é a história de um roteirista incumbido da missão de adaptar um livro para o cinema. Além disso, o filme trata de adaptação em outros sentidos: a adaptação darwinista pela sobrevivência e a do roteiro que se adapta às reviravoltas que acontecem na cabeça do roteirista.
Adaptação nos mostra alguns estereótipos sobre autores e não fica claro se a ideia é desmistificá-los ou reforçá-los. O primeiro deles: autores são gênios idealistas, tímidos e excêntricos. O segundo: autores escrevem para comer mulheres gostosas. Mais um: autores querem falar sobre temas elevados, mas infelizmente são obrigados a passar toda aquela mensagem profunda através de uma história articulada, cheia de tensão, com emoções fortes, enredos criativos e personagens densos; enfim, escrever nessas condições é um parto. Sobre produtores: eles são uma espécie de psicanalistas bajuladores cuja função é melhorar a autoestima do autor ao mesmo tempo em que cobram prazos e resultados.
Adaptação começa como a criação da maioria das obras: com uma crise de inspiração. Kaufman (Nicolas Cage), o roteirista, quer encontrar o veio para produzir sua obra prima, mas a folha de papel em branco insiste em ficar dando tchauzinho para ele. Como todos sabem, papel em branco tem o poder de evocar os fantasmas do autor: estou ficando careca, estou gordo, não peguei ninguém e todos aqueles problemas típicos de intelectuais de classe média.
De repente, uma fagulha de inspiração brota no meio dos cabelos ralos de Kaufman e o roteiro começa a andar. Ao longo do filme, outras crises e outras centelhas vão surgir na quase careca do nosso anti-herói e assim o filme vai mudando de rumo. É como se o filme seguisse o ritmo do processo de criação do roteiro.
O roteiro de Kaufman conta a história de um cara muito louco, um tal de John Laroche (Chris Cooper) que se dedica ao roubo de orquídeas raras em pântanos da Flórida protegidos por leis contra o comércio ilegal de espécies ameaçadas de extinção. Esse sujeito desprendido se dedica com paixão a projetos idealistas e tem um estilo de vida de dar inveja às pessoas certinhas que seguem rotinas tediosas.
O cara realmente faz o que lhe dá na telha e não está nem aí para a opinião dos outros. A história de Laroche desperta o interesse “jornalístico” de Susan Orlean (Meryl Streep) que escreve para o prestigiado The New Yorker. Aí está o problema de Kaufman: ele tem que criar o personagem Laroche a partir do retrato que Susan faz do Laroche real. É a questão dos filtros da arte. Em uma obra adaptada conhecemos o personagem pela visão do roteirista que por sua vez o conheceu pelas lentes do autor da obra original.
Para piorar, Kaufman não consegue deixar a si mesmo fora do filme; nem ele nem a escritora Susan e ambos se tornam personagens da obra. Uma mistura total entre realidade do autor e do personagem, o que no fundo é uma maneira criativa de tratar uma velha questão teórica da arte.
Ao longo do filme a visão de Kaufman sobre a arte de escrever vai evoluindo, evolução no sentido de melhoria e não apenas de adaptação. Seria uma proposta de retratar o amadurecimento do artista? O fato é que o filme migra de uma realidade insossa repleta de crises existenciais e masturbações mentais para uma sequência de ação tensa onde os personagens mostram de fato quem são e do que são capazes em situações extremas.
Essa passagem da masturbação ao sexo propriamente dito é mediada no filme por dois personagens: o irmão gêmeo de Kaufman e um professor que dá cursos miraculosos para roteiristas iniciantes. Obviamente Kaufman desdenha os dois, mas acaba se rendendo à ideia de que eles podem ter algo a lhe ensinar. O idealismo ingênuo se perde e o Kauffman intelectualizado passa por um choque de realidade.
Sim, existem problemas mais sérios na vida do que perder cabelos ou falta de inspiração. Na vida real acontecem tragédias, as pessoas não são o que aparentam e se você se enfiar em um pântano de madrugada pode ser atacado por um jacaré. Mesmo assim, tem gente que gostaria de experimentar a vida real de forma controlada.
É o caso de Susan que tenta conciliar sua vida respeitável, porém monótona, com doses secretas de ação. Infelizmente, a realidade é tão controlável quanto um reator nuclear. Se bobear, coisas acontecem e Susan bem de gostaria de poder voltar à sua vidinha plana.
Como se vê, os roteiristas do filme, os verdadeiros, conseguiram falar um pouco do seu trabalho e ao mesmo tempo tocaram em questões universais como a diferença entre contar histórias e protagonizá-las. Detalhe: eles se chamam Charlie e Donald Kaufman e o roteiro é baseado em um livro de Susan Orlean.
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