Essa reforma ortográfica!

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 2009. Na primeira fase da implantação que durou três anos os textos podiam ser escritos tanto na ortografia nova como na anterior. A partir de 2012 a ortografia nova tornou-se obrigatória em documentos do governo, material didático para o ensino regular, concursos públicos e vestibulares.

A implantação da reforma custou trabalho e dinheiro. Primeiro, entender e assimilar a reforma. Depois, a revisão dos textos nas estantes, na Internet, nas placas, nos rótulos, etc. Os professores tiveram que se reciclar, alunos tiveram que estudar mais. Tudo isso para quê? Para unificar a ortografia da língua portuguesa no mundo, ora. Vá lá, isso é importante, mas ainda não será dessa vez que ficará mais fácil escrever corretamente o português.

As novas regras não simplificam nossa vida em nada nadica. Se no futuro alguém voltar com a ideia de reforma ortográfica espero que terceirizem o projeto e contratem uma empresa para pô-lo em prática. Reforma ortográfica é um assunto que envolve muito dinheiro para ficar na mão de acadêmicos e letrados.

Feitas as devidas lamentações vamos a algumas curiosidades sobre a reforma.

K, Y, W. A volta dos que não foram

Segundo o acordo, voltam a constar em nosso alfabeto as letras K, Y e W. Como assim? Elas nunca deixaram de fazer parte do nosso alfabeto. Estão lá desde sempre em palavras como kantiano, hardware, darwinismo ou watt. Vamos esclarecer: a expulsão dessas letras de nossa ortografia ocorreu na reforma ortográfica de 1943. Na época, havia a intenção de eliminá-las, talvez por algum arroubo nacionalista, mas como nossas reformas são sempre confusas e tímidas, a eliminação foi apenas parcial. Além disso, novas palavras foram chegando em nossa língua, muitas provenientes do inglês, como know-how, por exemplo.

Na prática, a expulsão das três letrinhas foi solenemente ignorada, embora em qualquer livro de português estivesse escrito que elas não pertencem à nossa língua. Agora, o novo acordo ortográfico traz o retorno das três letras enjeitadas, como se isso tivesse algum significado prático. Elas são usadas pelo mundo afora em outros idiomas que adotam o alfabeto latino, estão em todos os teclados e aparecem em todas as publicações que lemos diariamente. Será que um dia as regras ortográficas serão escritas com um mínimo de respeito à realidade e à lógica?

A regra do Acordo Ortográfico para uso das letras K, Y e W terá efeito muito reduzido sobre a ortografia real. O Acordo Ortográfico limita o uso das letras K, Y e W a três casos:

  • Antropônimos e suas palavras derivadas como Kant/kantiano, Darwin/ darwinista ou Taylor/taylorismo).
  • Topônimos e suas palavras derivadas como Kwait/kwaitiano ou Malawi/malawiano.
  • Símbolos científicos, unidades de medida e siglas internacionais como kg (quilograma), kW (kilowatt), Y (ítrio) ou KLM.

Trata-se da mesma regra encontrada no Formulário Ortográfico de 1943 e revela uma resistência contra a incorporação de grafias estrangeiras ao nosso vocabulário. Se acatada, essa regrinha xenófoba cria um problema para a entrada de novas palavras no nosso idioma. Não é novidade para ninguém que atualmente assimilamos muitas palavras do inglês, rico em palavras com K, Y e W.

Se o Acordo for levado à risca teremos que abandonar a grafia consagrada e dicionarizada de palavras como software, know-how ou playground. O que fazer então? Aportuguesar a grafia de todos os estrangeirismos assimilados pelo idioma? Quem vai aportuguesá-los? O mais provável, porém, é que as restrições ao uso das letras K, Y e W sejam ignoradas sem nenhuma cerimônia pela sociedade brasileira.

A saia justa vai ficar para a ABL (Academia Brasileira de Letras). Cabe à ABL publicar o Vocabulário Ortográfico que serve de referência para nossa ortografia. A ABL poderia, por exemplo, fixar copirraite como grafia oficial de copyright, mas não o fez até hoje. A Academia Brasileira de Letras não parece disposta a ir contra as formas socialmente consagradas, nem tampouco a contrariar a norma. Não abona copirraite pelo uso irrelevante, nem copyright porque emprega Y.

O resultado é um Vocabulário Ortográfico defasado com a realidade da língua. Como a língua não para, a fixação da grafia de estrangeirismos com K, Y ou W ficará a cargo de agentes mais dinâmicos como editoras, grandes jornais e lexicógrafos.

Grafias estrangeiras

O Acordo Ortográfico prescreve que grafias estrangeiras são aceitas apenas em nomes próprios estrangeiros e suas palavras derivadas. Entenda-se por grafia estrangeira formas de escrever incomuns em nosso idioma como em Shakespeare e shakespeariano. Se lêssemos a palavra Shakespeare segundo a nossa ortografia o resultado seria /xakespeare/ e não /xêykspir/.

Essa regra do Acordo tem um objetivo válido que é manter uma unidade mínima em nossa grafologia. A aplicação da regra, porém, é incerta principalmente no mundo real, que é bem diferente daquele idealizado por alguns gramáticos. Existem várias palavras em nossa ortografia que utilizam grafia estrangeira como em bacon que pronunciamos /bêicõ/ e paella que se fala /paêλa/. Até hoje eu não vi nenhuma cantina onde sirvam pitza de muçarela. Obs.: o Aurélio registra tanto muçarela como mozarela. Fiquem a vontade para escolher o queijo da sua preferência.

Nesses tempos de globalização é arriscado dizer que vamos evitar a entrada de grafias estrangeiras em nosso idioma. O problema maior, nesse caso, fica por conta das letras K, Y e W que contam como grafia estrangeira mas estão presentes em nossa língua em palavras como karaokê, software e yakisoba. Essa reflexão até que me deu a ideia para o nome de um dicionário digital: Dicionário Uébe.

Os criadores da Reforma Ortográfica deixaram a ABL (Academia Brasileira de Letras) em uma saia justa. Cabe à ABL publicar o Vocabulário Ortográfico, o livro que mostra a grafia oficial das palavras da língua portuguesa no Brasil. O problema é que o Acordo Ortográfico veta as grafias estrangeiras. O que são grafias estrangeiras? Boa pergunta, mas não vamos respondê-la nesse post. Basta sabermos que elas são vetadas no VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa). São exemplos de grafia estrangeira: hardwarejingle e pizza.

O que fazer se essas palavras circulam por aí e precisam ser escritas? A ABL adotou uma solução engenhosa: no final do VOLP incluiu uma lista de palavras sob o lacônico título palavras estrangeiras. Entende-se que são palavras de uso corrente no país, mas que usam grafia estrangeira. Dessa forma, a ABL se livrou do ridículo que seria não registrar oficialmente a grafia de palavras que estão na boca do povo como bunkeryakisoba ou blog. Ao mesmo tempo, colocou essas palavras em quarentena antes de uma incorporação oficial definitiva ao idioma.

Nós estamos acostumados a uma velocidade alta de transformação social e, por isso, achamos leeeeeeento o processo de incorporação das palavras estrangeiras ao nosso léxico. No entanto, é preciso admitir que o conservadorismo da ABL tem sua razão para ser. Primeiro a palavra tem que se firmar como genuína do idioma; depois ela passa por uma acomodação fonética e, por último, por uma acomodação ortográfica.

Esse processo ocorre com todos os estrangeirismos. Basta lembrar como demorou a acomodação de palavras que chegaram ao nosso idioma há mais tempo como as francesas boate (de boite), abajur (de abat-jour) ou conhaque (de cognac). E mesmo depois que a palavra ganha sua grafia nacional, leva um bom tempo até que os nativos passem a adotar a grafia aportuguesada. Você já viu alguém tomando uísqueWhisky é mais chic (ops, chique), não é mesmo?

Menos maiúsculas

A reforma ortográfica flexibilizou o uso de maiúsculas na grafia portuguesa. Nesse ponto, a reforma seguiu a tendência dominante pela diminuição da formalidade nas relações sociais. O uso de maiúsculas na escrita é marcadamente cerimonial. Historicamente, as maiúsculas são mais antigas, surgiram na Idade Antiga, enquanto que as minúsculas foram desenvolvidas na Idade Média. Esse aspecto histórico gerou uma associação das maiúsculas ao passado glorioso do período clássico e, por isso, elas são reconhecidas como mais nobres. Começar um nome com maiúscula dá um toque de formalidade à expressão, soa como uma reverência.

O Acordo Ortográfico deixa por conta dos escribas escolherem entre a opção mais formal (com mais maiúsculas) e a mais contemporânea como nestes exemplos:

  • Prédio na Rua XV de Novembro.
  • Prédio na rua XV de Novembro.
  • O Governador José Serra.
  • O governador José Serra.
  • O livro Memórias de um Sargento de Milícias.
  • O livro Memórias de um sargento de milícias.
  • As ciências naturais Biologia, Física e Química.
  • As ciências naturais biologia, física e química.

Em outros usos as iniciais maiúsculas foram suprimidas como nos nomes dos dias da semana, meses, estações do ano e pontos cardeais (segunda-feira, janeiro, primavera e sudoeste).

Houve um tempo em que os cavalheiros tiravam o chapéu ao cruzar com as senhoras de passagem. Atualmente, os homens sequer usam chapéu e, se usassem, dificilmente fariam mesuras às damas. Foi-se o tempo das reverências. A escrita segue o espírito da sociedade, por isso, menos maiúsculas, mais moderno. Ou seria pós-moderno?

frontão romano

Grafias duplas

O económico agrónomo cleptómano. Se você é português não deve ter estranhado a frase anterior, mas se é brasileiro pode ter ficado com a impressão de que os acentos estão errados.

A reforma ortográfica, destinada a unificar a escrita em língua portuguesa, admite muitas grafias duplas. Não falo das palavras que se escreve de dois modos tanto no Brasil como em Portugal. Refiro-me às grafias duplas geograficamente marcadas. Por aqui, ninguém escreve telefónica com acento agudo e no além mar eles não escrevem toxicômano com acento circunflexo. As palavras proparoxítonas com a vogal oral o fechada têm duas grafias: uma tipicamente brasileira com acento circunflexo e outra com acento agudo usada em Portugal.

Não sei por que os redatores do Acordo Ortográfico deixaram essa grafia dupla persistir. Foi uma bola fora, pois aqui no Brasil ninguém vai escrever anómalo, da mesma forma que os portugueses não vão escrever autômato.

A presença dessas palavras na escrita vai denunciar a procedência do texto. Tudo bem que é fácil identificar se o texto é de Portugal ou do Brasil sem olhar para a grafia, afinal, existem diferenças sensíveis de vocabulário e estruturas sintáticas entre essas duas variantes do português. Mas a ideia do Acordo não era unificar a escrita? Ah, esses letrados e suas excessivas exceções. Chegam a ser cómicos/cômicos.

Nomes de localidades

O Acordo Ortográfico recomenda o uso dos topônimos estrangeiros vernáculos, ou seja, devemos usar os nomes de locais estrangeiros seguindo o português tradicional. Vou exemplificar: o nome do país dos japoneses é escrito Japão aqui no Brasil, Japan pelos americanos e Nippon pelos japoneses quando eles usam o alfabeto latino. Japão é o topônimo vernáculo para o país dos japoneses e pouca semelhança tem com a forma que os nipônicos usam para se referir à sua terra.

Isso acontece porque no português vernáculo era comum fazer adaptações drásticas nos topônimos estrangeiros. München passou a MuniqueMilano a MilãoGenève a Genebra e assim por diante. Dá para perceber que a língua portuguesa era dominada pela ideia nacionalista de aportuguesar os nomes estrangeiros. Na atualidade, a tendência é de manter a grafia e pronúncia originais dos nomes, sempre que possível.

A regra do Acordo sobre os topônimos vernáculos não é apenas ortográfica. É também uma regra de escolha lexical, pois sugere o uso de uma palavra em lugar de outra. No caso, sugere a palavra aportuguesada em lugar da forma de origem. O Acordo Ortográfico adotou uma postura de equilíbrio nesse ponto. Manteve um pé na tradição ao recomendar o uso das formas vernáculas e se alinhou com a tendência atual do pensamento multicultural ao permitir a grafia original dos topônimos estrangeiros de formação recente. Afinal a língua não para de evoluir e na época de Camões não existiam ZimbábueSri Lanka ou Myanmar.

Por isso, quando for viajar aos EUA lembre de escrever Nova Iorque enquanto estiver em solo brasileiro. Só use New York quando chegar lá. Quanto a Nova York, esqueça tanto aqui como lá.

Hífen

 As mudanças mais enjoadas trazidas pela reforma se referem ao uso do hífen.  O emprego do hífen era nebuloso e, com o acordo, ficou enevoado, hermético, iniciático. Eu gosto de me expressar nos rigores do português castiço, mas confesso que não domino as novas regras do hífen e tenho uma boa razão para isso: não há regras para o uso do hífen.

Hífen é aquele risquinho horizontal que colocamos entre duas palavras como em bem-vindo ou em dia-a-dia (mas só em alguns casos, bem entendido). Na teoria, uma das funções do hífen é avisar que as palavras unidas por ele costumam andar juntas e comunicam um significado distinto daquele que vem da compreensão das palavras em separado. Por exemplo: quando falamos pé-de-meia não estamos falando do  nem da meia mas de economias.

Essas palavras que andam de mãos dadas graças ao hífen e que são conhecidas entre os especialistas como locuções são bem compreendidas na língua falada onde obviamente não existe hífen. Os falantes entendem as relações entre as palavras quando conversam entre si e só precisam usar hífen no discurso escrito porque algum dia no passado remoto da língua alguém achou que seria interessante usar o tal risquinho em alguns casos especiais. A utilidade prática do hífen é nula. Se analisarmos as regras da escrita em português veremos que as locuções são escritas ora com hífen (recém-nascido), ora com espaços entre as palavras que a compõem (pé de moleque) e, em outros casos juntando as palavras (paraquedas).

Gramáticos da velha guarda se desmancham em dar explicações “científicas” para o uso do hífen nesta ou naquela situação, mas o fato é que o emprego do pequeno risco horizontal virou samba-do-crioulo-doido depois do Acordo Ortográfico e ninguém mais sabe porque tudo-junto se escreve se-pa-ra-do. Uma coisa é certa. O acordo ortográfico foi acordado por pessoas do ramos das letras que tinham interesse cartorial em manter a língua repleta de exceções confusas.

Se a nova ortografia tivesse sido pensada por um programador de computadores, por exemplo, haveria uma regra simples do tipo: usa-se o hífen em todas as locuções. Infelizmente, ainda há gente que vive de colocar hífen nos lugares certos. Hífen dá emprego e escasso poder a alguns pedantes. As reformas ortográficas da língua portuguesa acontecem em média a cada 30 anos. Espero que na reforma de 2040 a regra seja simples e direta: não se usa mais hífen e ponto.

Acentos diferenciais

Cágado vai perder o acento? A cada reforma ortográfica mexemos um pouco nas regras de acentuação. Com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa vão desaparecer alguns acentos. Por exemplo: o acento que diferencia para preposição de pára verbo vai cair. Infelizmente, nem todos os acentos diferenciais serão decepados. Não sei por que cargas d’água o acento de pôr verbo continua a diferenciar de por preposição.

Seria tão simples e elegante extinguir o acento diferencial de vez, mas nossos letrados adoram exceções. Imagino os protestos veementes deles se alguém propusesse a regra definitiva e redentora: acabam todos os acentos da ortografia portuguesa. Os ingleses nunca usaram acentos e são felizes. Somente um número irrelevante de frases poderia gerar ambiguidade pela falta de acentos como em: Vi um cágado na beira do rio.

Para consolo dos inconformados com as tortuosas regras ortográficas da nossa língua lembro da nossa única regra de acentuação que não tem exceções: todas as palavras proparoxítonas são acentuadas. Por isso, para alívio geral, cágado continua com acento no a. No primeiro a.

Como será a reforma ortográfica de 2040?

No Brasil, acontece uma reforma ortográfica a cada 30 anos aproximadamente. Tivemos reformas em 1943 e 1971. Em 2009, iniciamos a primeira reforma do século XXI. Seguindo essa lógica podemos imaginar que haverá uma nova reforma em 2040.

Em 2040, a garotada de hoje estará no poder. Hoje, eles passam o dia enviando mensagens pelo celular e teclando nas redes sociais. Com certeza, essa experiência de escrita vai influenciar a próxima geração de tomadores de decisão. Quem sabe, então, teremos a primeira reforma ortográfica realmente simplificadora da nossa história.

Esses dias, eu estava no Google Analytics observando os hábitos dos usuários que frequentam o meu site. Os números são claros e mostram que os internautas praticam a ortografia simplificadora. Um exemplo: quando olhei o relatório, 380 internautas tinham procurado uma página do meu site pelo argumento de busca “lixo organico“.

Outros 34 usaram as palavras-chave “lixo orgânico“. Ou seja: menos de 10% dos usuários utilizaram o acento circunflexo nesse contexto informal que é uma busca na Internet. Mesmo assim, a pesquisa dá certo porque os mecanismos de busca entendem o que o usuário quer dizer.

No site onde trabalhei, os usuários nos enviam perguntas por escrito. A esmagadora maioria delas é redigida somente com minúsculas. As maiúsculas são solenemente ignoradas por 90% desses internautas. Os sinais de pontuação também costumam ser suprimidos. A ausência de pontuação seria uma variação da velha elipse, recurso retórico muito apreciado por quem valoriza a concisão? Sim. Trata-se de uma redação mais concisa, onde não se busca estilo, mas apenas comodidade.

Diante desses fatos, penso que se os teclados de computador deixassem de ser fabricados com teclas para acentuação, pontuação e maiúsculas a maioria dos usuários nem notaria a ausência. Por aí, dá para ter uma ideia do rumo que pode tomar a próxima reforma ortográfica. Alguns vão dizer: Qua qua qua, esse internetês não vai dar em nada. Veremos. Basta esperar uns trinta anos.

Letras

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