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Crítica | Anatomia de um crime

Anatomia da justiça

Anatomy of a murder
Direção de Otto Preminger
1959 : EUA : 160 min :  preto e branco
Com James Stewart (Paul Biegler),
Lee Remick (Laura),
Ben Gazarra (Manion),
Arthur O’Connell (McCarthy),
George C. Scott (Dancer) e
Eve Arden (Maida)
Música de Duke Ellington

Uma sugestão para quem vai assistir o filme: imagine que você é um dos doze jurados e que no final terá que dizer: inocente ou culpado. Fique atento, pois nesse filme o espectador não recebe informações privilegiadas. O crime não aparece diante das câmeras em nenhum momento.

Temos que reconstituir os fatos a partir de dados que vão surgindo durante o julgamento. Ficamos sabendo que há um corpo cravejado de balas e que quem fez os disparos foi o tenente Manion, mas não é um caso fácil. Agravantes e atenuantes estão embaralhados de tal forma que o espectador fica dividido.

A Justiça é uma coisa complicada

Afinal, o tenente deve ser inocentado ou tem que pagar pelo ato que cometeu? Que saudades daqueles filmes de tribunal em que sabíamos com nitidez cristalina se o réu é culpado até a medula ou inocente como um anjinho de Rafael. Anatomia de um crime coloca-nos diante do direito real, com todas as suas manipulações, cortinas de fumaça, incertezas e seres humanos que não são absolutamente bons ou maus.

O ex-promotor Paul Biegler (James Stewart) abandonou sua carreira de sucesso e agora ocupa-se de coisas mais interessantes como pescar, dedilhar um jazz ao piano, tomar um uísque ou conversar com seu amigo McCarthy (Arthur O’Connell) sob a filosofia do direito. Quando falta-lhe o numerário, ele assume alguma causa para colocar as contas em dia.

Por aí dá para ver que Biegler não tem uma visão romântica da justiça. O caso que lhe cai nas mãos é a defesa do tenente Manion, acusado de matar um homem publicamente com cinco tiros. Como estabelecer uma linha de defesa em um caso tão flagrante? Bem, o filme nos mostra a batalha do advogado para livrar seu cliente das grades, porém há muitos obstáculos a remover.

O réu é uma pessoa arrogante, cínica e fria e a defesa quer provar que ele perdeu a razão diante da situação limite em que se deu o delito. O motivo do crime seria uma desforra porque o morto teria estuprado a esposa do réu. O problema é que Laura (Lee Remick), a esposa, tem um comportamento bem, digamos, descontraído com os homens em geral, o que nos leva a suspeitar que não se trate de um caso de estupro. No final, teremos um veredicto. Faça sua aposta você também, antes de ouvir a conclusão dos jurados.

Entre o branco e o negro tem os tons de cinza

Anatomia de um crime coloca algumas cascas de banana no caminho do espectador que tenta a todo custo se posicionar no caso. A cada nova revelação nossa opinião pode balançar. O réu não atrai simpatias, mas isso interessa ao caso? O que está em julgamento é a pessoa ou o ato? O estupro justifica a insanidade do réu? E se o estupro não ocorreu e trata-se de uma questão de ciúme descontrolado, o que muda na avaliação dos jurados?

Biegler é um advogado calejado e usa sua retórica afiada para manipular a opinião da plateia. Do outro lado, os promotores não deixam por menos e temos uma batalha de raposas matreiras. A manipulação emocional dos advogados confunde a justiça? Não é um filme para comemorar no final quando os jurados dão o veredicto magnânimo porque diante de tanta ambiguidade, qualquer veredicto é possível. O valor do filme está em mostrar o processo a fundo, em nos deixar confusos.

Marcante

  • O juiz pede aos jurados que desconsiderem a argumentação da defesa. O réu pergunta reservadamente ao seu advogado como é possível alguém desconsiderar o que ouviu.
  • O promotor Dancer espreme a testemunha Mary Pilant. A tensão vai aumentando, aumentando, até que o promotor comete o erro fatal de fazer uma pergunta para qual não conhece a resposta.

Filmes

Crítica | Apocalypto

Caçada implacável ao bom selvagem

Direção de Mel Gibson
2006 : EUA : 139 min
Com Ruddy Youngblood (Pata de Jaguar) e
Dalia Hernandez (Seven).
Site oficial: www.apocalypto.com

O filme é sobre caçadas e já na primeira tomada um grupo de índios caçadores acua uma anta para a armadilha mortal. Depois de abater a presa, o líder da caçada arranca o coração do animal. Esse é o primeiro coração arrancado durante o filme.

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Crítica | Colateral

Quem se importa se um estranho morrer?

Collateral
Direção de Michael Mann
2004 : EUA :  116 min
Com Tom Cruise (Vincent) e
Jammie Fox (Max)
www.collateral-themovie.com

No início de Colateral todos os personagens são desconhecidos uns dos outros. Por capricho do destino ou do acaso eles vão se cruzar ao longo das poucas horas em que a história acontece e suas vidas vão se entrelaçar de forma trágica. São pessoas perdidas na noite de uma cidade desumana e que parece vazia. Colateral fala sobre solidão na selva urbana, solidão que desilude uns e que torna outros em selvagens insensíveis.

O fracassado do bem e o bem-sucedido do mal

Max (Jammie Fox) e Vincent (Tom Cruise) são subprodutos opostos da metrópole. Max é um pacato fracassado e Vincent um psicopata bem-sucedido. Um pensa que nada pode e o outro que pode tudo. O pacato tem um sonho distante e busca refúgio olhando para uma foto pendurada no seu quebra sol. O psicopata é uma máquina de matar dado a filosofar sobre a inutilidade da virtude. Colateral é um duelo entre dois extremos. Seria o duelo entre o bem e o mal?

Max é taxista e trabalha a noite. Sua ligação  com as pessoas se resume contatos rápidos pelo retrovisor. Elas entram e saem de seu táxi e deixam impressões vagas. Max é um observador, às vezes enojado, do seu mundo. Ele é boa praça, um cara carismático na sua insignificância. Graças a isso, conquista a simpatia de alguns passageiros. Até ganha um cartão da promotora de justiça Annie para quem ele fez uma corrida.

Para o caso de ele querer conversar sobre a vida em geral, sabe como é, né? O batismo de fogo de Max começa quando Vincent entra em seu carro. Vincent vai permanecer em Los Angeles apenas por algumas horas para contatar cinco pessoas em pontos diferentes da cidade e quer que Max o leve até elas. Infelizmente, os assuntos comerciais de Vincent com seu primeiro contato da noite não saem como era para ser e Max se torna testemunha de um assassinato.

Missão dada, missão cumprida

A partir daí a relação entre os dois muda e Max passa a ser motorista e refém de um matador profissional obcecado em cumprir sua missão. Depois do primeiro corpo tombar o ritmo do filme muda. A tensão cresce a cada cena e começa uma longa corrida pelas ruas de Los Angeles regada a violência e morte.

Vilão que se presa tem carisma e Vincent perturba o espectador porque é um perfeccionista na arte de matar. Não lhe faltam as virtudes do vilão: tem sangue frio, é oportunista, inteligente, corajoso, competente e focado. Além de matador profissional, Vincent é um filósofo da violência capaz de confundir a cabeça de Max com suas tiradas cínicas. Apesar de ser um niilista, para Vincent, missão dada é missão cumprida e esse fundamentalismo é o seu calcanhar de Aquiles. Ufa, ainda bem que esse cara tem um ponto fraco.

Solidão da metrópole

Diretores como John Ford elevaram o gênero western à categoria de arte. Michael Mann é um dos responsáveis pela elevação do nível do gênero policial. No western, havia a solidão das grandes paisagens desabitadas. Em Colateral, temos o homem solitário que enfrenta a violência do asfalto sem fim. Quando duas pessoas se conectam por algum motivo, mesmo que sejam extremos opostos, haverá uma convergência entre elas.

Cada um vai dar algo de si ao outro. Max, o meticuloso, vai ganhar em coragem, determinação e capacidade de improvisar sob pressão. Vincent, o facínora, acabará esboçando alguns sinais de humanidade. Mas Michael Mann é um otimista e nos seus filmes a aproximação entre o bem e o mal acontece, mas nunca termina em relativismo. O bem e o mal não devem se misturar e cabe ao bem vencer no final.

Marcante

  • A fotografia das cenas externas e noturnas, a trilha sonora intimista, o timing preciso de cada cena criam um clima único. É como caminhar sozinho e sem rumo na madrugada pelas ruas de uma grande cidade

Filmes

Crítica | Como era verde meu vale

Paraíso perdido

How green was my valley
Direção de John Ford
1941 : EUA : 118 min : branco e preto
Com Walter Pidgeon (Mr. Gruffydd),
Maureen O’hara (Angharad),
Roddy McDowall (Huw Morgan),
Donald Crisp  (Gwilym Morgan) e
Anna Lee (Bronwyn Morgan)

O filme começa com Huw Morgan, narrador e personagem, se preparando para deixar o vale em que viveu toda sua vida até então. O lugar está decadente e triste: vemos uma colina com casas decrépitas enfileiradas à beira da estrada e, lá no alto, chaminés de uma mina de carvão expelindo uma inesgotável e grossa fumaça negra. Depois dessa breve introdução, a narrativa recua 50 anos e voltamos à infância do narrador, a um paraíso mítico que se perdeu no tempo.

O vale era verde

O mundo perfeito de Huw (Roddy McDowall) é simples e puro. Nele, cada pessoa tem um lugar e um papel a cumprir. Na pequena comunidade do País de Gales vive-se em função da mina de carvão onde todos os homens trabalham. As mulheres cuidam da casa, a família é completa, numerosa e sólida. A mesa é farta e todos sentam juntos na hora do jantar, fazem uma oração e só então o patriarca distribui a comida. No domingo, a família unida vai ao culto protestante na pequena capela. Todos conhecem a todos, namoro é uma coisa muito séria e termina em casamento. E as festas de casamento são alegres, com muita dança, cantoria e regadas a cerveja. Tudo perfeito não fossem as coisas da vida.

Esse é um filme sobre perda e degradação. O paraíso existiu em algum momento no passado. A família estava toda reunida à mesa, não havia conflito e tudo funcionava como um bom relógio. No entanto, escória negra que sai da mina de carvão começa lentamente a invadir o verde vale. Os mineiros que recebiam o suficiente para uma vida digna, de repente, vêem seu salário rebaixado por conta da lei da oferta e da procura. Mas esse é só o primeiro sinal do que virá.

Dois mundos

Há dois vales verdes no filme: um que é perfeito e que existe na memória de Huw e o outro que é real. No vale verde real crianças trabalham no fundo da mina, onde a qualquer momento podem ocorrem acidentes sérios; o serviço é insalubre e não há garantias trabalhistas. A comunidade é fechada e mesquinha; os costumes são rígidos e os homens são briguentos, beberrões e broncos. Os pais de Huw são conservadores demais e os seus irmãos desafiam a autoridade do pai apesar da austeridade que impera na casa dos Morgan.

Ninguém melhor que o mestre John Ford para nos mostrar a coexistência desses dois mundos antagônicos. Ford era um visionário. Seus filmes adiantam em décadas muitas questões fundamentais. Em Como era verde meu vale, Ford colocou a questão da degradação do ambiente muito antes do primeiro ecologista. Sua visão da questão social no filme tem uma maturidade que deve irritar os esquerdistas esquemáticos.

Fico pensando se a mensagem do filme é pessimista ou se a idéia de Ford era propor um resgate do paraíso perdido. É possível escapar da degradação do mundo tecnológico? O mundo só é perfeito na infância e depois dela estamos condenados à decadência? O vale verde é possível ou é apenas uma miragem de vida simples e comunitária engolida pelo mundo industrializado? Cada um interprete como achar melhor, mas o vale era verde.

Marcante

  • As cenas que mostram o vale verde no seu auge: o retorno do trabalho, a família numerosa reunida à mesa, as cantorias, o culto dominical, o casamento. Com certeza, o Céu é exatamente assim.

Filmes

Crítica | Crepúsculo dos deuses

A estrela cadente e o Joâo Ninguém

Sunset Boulevard
Direção de Billy Wilder
1950 : EUA : 110 min : preto e branco
Com William Holden (Joe Gillis)
Gloria Swanson (Norma Desmonds) e
Erich Von Stroheim (Max)

Quem conhece o diretor Billy Wilder a partir de suas deliciosas comédias, pode pensar que Crepúsculo dos deuses nem seja obra dele. Embora alguns vejam toques de humor negro no filme, trata-se de um drama melancólico com uma visão dura, duríssima, sobre a decadência e o fracasso. A história tem fim trágico, mas não há problema em revelar isso, afinal o filme começa com um cadáver boiando na piscina e depois regride no tempo para contar como tudo aconteceu.

Relacionamento de interesses

Um roteirista de cinema desempregado é perseguido pelos cobradores que querem tomar o seu carro. Fugindo das dívidas, Joe Gillis (William Holden) acaba por acaso na mansão em que Norma Desmonds (Gloria Swanson), ex-estrela de cinema, vive reclusa. Os interesses se cruzam e Joe acaba se tornando roteirista da ex-atriz em um projeto dela para retornar às telas. Só que aquilo que começa como uma relação profissional e oportunista evolui para um relacionamento complexo e dramático. Para complicar a situação, temos o mordomo Max que desempenha um papel chave na trama.

Norma Desmonds é uma mulher de meia idade, muito rica, que conheceu o estrelato na juventude, durante os tempos do cinema mudo. Mas o tempo passou para ela e o cinema passou por uma revolução. Norma agora vive reclusa em um mundo fechado, totalmente dedicada ao culto de seu passado de estrela. Ela não consegue aceitar a realidade e comporta-se como se ainda fosse uma estrela temperamental. É arrogante, manipuladora e autoritária. Fala com as pessoas como se estivesse representando um papel em um de seus filmes. Seu apego ao passado e a incapacidade de enfrentar a decadência transformam Norma em uma figura patética e frágil. Construiu um muro de isolamento à sua volta e talvez mereça a solidão em que vive.

O sucesso é para poucos

Joe Gillis é um roteirista que não conseguiu decolar na carreira e já pensa em mudar para uma profissão menos glamourosa e mais prosaica. Joe é um fracassado, mas tem alguma dignidade. É um oportunista, embora sinta-se mal sempre que tem de praticar atos sórdidos. Ele gostaria mesmo é de fazer sucesso pelo talento, mas parece que falta-lhe alguma coisa para chegar lá. A frustração faz de Joe um homem entediado e sem perspectiva.  

Em alguns momentos o filme parece noir, principalmente quando Joe, que é o narrador, faz seus comentários ácidos. Ao conhecer Norma, ele vê a chance para resolver alguns problemas financeiros. Então, Norma o envolve em seu mundo e a contra gosto ele se deixa manipular. Isso por um certo tempo até que uma crise de identidade o faz repensar a vida.  E aí o caldo entorna.

Max, o mordomo, é ao mesmo tempo protetor e carcereiro de Norma. Protege a patroa contra o mundo real e cuida dela nos momentos em que ela entra em depressão. No entanto, alimenta a insanidade da ex-estrela, a quem idolatra.

Cinema sobre cinema

Crepúsculo dos deuses é cinema falando sobre cinema. Alguns de seus personagens são figuras reais como o diretor Cecil B. DeMille, que representa a si mesmo. A meta arte (arte que fala sobre si mesma), costuma dar maus resultados, mas não é o caso de Crepúsculo, pois o filme não gira em torno do umbigo do artista. É uma história universal sobre a decadência que calhou de ter artistas como personagens. Isso faz sentido porque o artista de cinema é um dos que mais sofre com a decadência e o competitivo mundo do cinema costuma deixar muitos na soleira da porta amargando o fracasso ou o esquecimento.

O final do filme é surreal. Um ato insano pode ser o último recurso de quem quer ter uma última vez os holofotes sobre si. Para alguns, a decadência chega bem cedo, para outros demora um tanto, mas vem para todos. Billy Wilder nos mostra como é trágico não saber aceitar a decadência. Como custa caro não se preparar para o dia que sucede a fama. O glamour dos holofotes é fugaz e a competição é implacável. A história de Norma se repete cada vez que uma estrela cadente risca o céu.

Marcante

  • A vida e a arte se misturam. Gloria Swanson foi estrela do cinema mudo, Erich Von Stroheim dirigiu filmes e Billy Wilder teve seus dias de roteirista fracassado na juventude. Cecil B. DeMille, da Paramount, representa a si mesmo no filme e dirigiu Gloria Swanson na época do cinema mudo. Os amigos de Norma no filme eram realmente atores do cinema mudo como Buster Keaton, que faz ele mesmo. Onde termina a realidade e começa a ficção?
  • Interpretação na interpretação. O desafio de Gloria Swanson foi representar uma atriz que vivia em um mundo de sonho e agia em seu cotidiano como se estivesse no set de filmagem. Norma Desmonds é exagerada como suas atuações. Ela procura expressar suas emoções sem recorrer a palavras, como se a vida fosse um filme mudo.

Filmes