Crítica | O segredo de seus olhos

O amor, como a justiça, tarda mas não falha

El secreto de sus ojos
Direção de Juan José Campanella
2009 : Argentina : 127 min
Com Ricardo Darin (Esposito) e
Soledad Villamil (Irene)

Esposito é um investigador aposentado da justiça argentina que resolve passar a sua vida a limpo escrevendo um romance policial. O livro trata de um crime ocorrido em 1974 investigado pelo próprio Esposito e que gerou desdobramentos profundos na sua vida. Seria um balanço autobiográfico? Mais que isso: durante a pesquisa para a escrita do romance novos fatos vem à tona e se incorporam à história.

O romance e a realidade se fundem, um influenciando a outra. Na verdade, Esposito não tem pretensões literárias. A escrita do romance funciona como uma tentativa da auto preservação, como uma forma de evitar que o passado lentamente se perca na memória, deixando que injustiças se dissolvam impunes e que a amargura substitua os sonhos não realizados.

As várias justiças

Esse é um filme sobre justiça. Os personagens são investigadores, promotores, juízes, assassinos e vítimas. Há várias justiças retratadas nele: a justiça da promotora formal e correta que exerce sua carreira dentro dos rigores da legalidade; a justiça do investigador impetuoso que passa por cima das formalidades para alcançar resultados práticos, mas que no geral permanece fiel aos princípios do direito e a “justiça” sumária dos caçadores de subversivos da ditadura argentina. No final do filme somos apresentados a uma quarta “justiça”: aquela que é feita pelo cidadão com as próprias mãos. Além disso, o filme consegue ser uma história de amor frustrado que resiste ao tempo.

O segredo de seus olhos alterna com maestria duas épocas narrativas: a primeira se desenrola em 1974, época do crime, e a outra na atualidade narrativa. (vinte e cinco anos depois). Esposito é um homem melancólico e atormentado por não ter conquistado o amor de Irene, sua superior no tribunal, mais jovem que ele, refinada, bela e bem posicionada na sociedade. Paralelamente a esse fracasso na vida pessoal,

Esposito não se conforma com o desfecho do caso Morales, a investigação mais importante de sua vida sobre uma bela jovem casada que é brutalmente estuprada e morta. As cenas que se desenrolam no passado narrativo tratam das investigações de Esposito para chegar ao criminoso. Incansável e arrojado, ele conta com o auxílio de seu fiel colaborador, o divertido Isidoro que seria um companheiro perfeito não fossem as garrafas que ele esvaziava após o expediente, às vezes durante o expediente.

Busca interminável

A procura pelo assassino é baseada em indícios vagos e intuições. Esposito encasqueta que o crime foi cometido por um antigo conhecido da vítima e passa a perseguir o suspeito com uma obsessão que o leva a quebrar regras e protocolos além de fazer inimigos dentro do palácio de justiça. O empenho de Esposito em encontrar o assassino se explica pela forte impressão que lhe causa o viúvo da vítima, um homem devotado à memória da esposa morta que passa seus dias tentando encontrar o assassino da mulher. Morales, o viúvo, se dedica platonicamente à esposa morta, de forma semelhante ao detetive que nutre uma paixão oculta pela promotora.

Há dois clímax no filme: o primeiro ocorre quando o assassino é finalmente alcançado. Depois, temos o segundo foco de tensão quando a “justiça” se volta contra quem a prática. Sem ser panfletário, o filme faz um ajuste de contas com a história argentina. As reflexões dos personagens sobre a ação da justiça em um caso policial hediondo podem ser transpostas para um plano mais alto em que se questiona o papel da justiça nos tempos sombrios da ditadura da década de 1970 naquele país.

No filme não há como saber se a vítima tinha ligações com a subversão, nem se o criminoso participava de atividades “justiceiras” antes de ser preso. Talvez os argentinos façam as mesmas perguntas que os personagens quando olham pra seu passado recente. É possível esquecer o passado mesmo que a justiça não tenha sido feita e criminosos caminhem livremente pela rua? A punição do criminoso traz algum conforto àquele que perdeu quem ama para a violência? É possível fazer justiça em tempos de brutalidade? Há recomeço para quem teve sua vida estraçalhada por facínoras?

Pior que a morte

Em um momento do filme, Esposito comenta com o viúvo Morales que na Argentina não há pena de morte. O máximo que o criminoso irá enfrentar será a prisão perpétua. Obviamente ele se refere à justiça formal e não aos esquadrões da morte. Morales mesmo abalado pela perda de sua amada se declara contra a pena de morte, não por motivos humanitários, mas por crer que a morte é uma dádiva para o criminoso. Morto, o culpado não enfrentaria o sofrimento de uma vida vazia como a dos que sobreviveram ao seu crime. Esse diálogo é fundamental para entender o final surpreendente do filme.

Esposito é um homem de ação, íntegro e determinado como profissional. Na vida sentimental, porém, ele é um pouco lerdo. Apesar do seu amor profundo e visível por Irene, nunca chega a se declarar a ela com todas as letras nem vai à luta para conquistá-la, embora a jovem tenha lhe passado todos os sinais necessários para ele avançar. Com o tempo, diante das frustrações, ele vai se entregando ao conformismo. Seria essa uma metáfora do cidadão argentino dos tempos da ditadura? Felizmente, nenhum inverno dura para sempre e mesmo depois de aposentado, parece que Esposito ainda tem alguma lenha para queimar.

Além de Esposito, O segredo de seus olhos tem outros personagens densos. A promotora Irene é sensível e correta, mas acometida pela mesma insegurança nos sentimentos de Esposito. O tempo todo os dois estão próximos e distantes ao mesmo tempo. O amor entre eles nunca vai além de uma promessa. Eles vivem em conflito por conta dos temperamentos opostos, mas trata-se de um caso flagrante de opostos que se atraem.

Isidoro é um homem espirituoso e boa vida se admitirmos que encher a cara depois do expediente seja uma forma de curtir a vida. Para ele, pelo menos é. Isidoro é um grande parceiro, mas como em todo filme policial os fiéis escudeiros se dão mal. O viúvo da vítima assassinada é um homem obcecado pela memória da mulher e a obsessão transforma um homem. É dele a visão mais radical mostrada no filme sobre a Justiça. Chocante, extrema, fundamentalista? Assista e conclua.

O segredo de seus olhos tem uma fotografia com toques de ousadia bem sucedida. Nas cenas iniciais, as imagens têm uma profundidade de campo estreita o que produz um efeito intimista de imagens desfocadas seletivamente. Os closes são intensos e ressaltam o olhar dos personagens; os cenários nos ambientes de tribunal, nos cafés portenhos e nas casas argentinas criam um ambiente requintado, nostálgico, intimista e charmoso exatamente como nosso imaginário concebe Buenos Aires. O filme é um drama psicológico em que se desvenda um crime, que trata de amor e política, enfim, uma salada deliciosa de gêneros cinematográficos. Os argentinos dominam a arte de produzir vinhos e filmes complexos.

Marcante

  • Perseguição no estádio. A câmera se aproxima pelo ar como se viesse de helicóptero e dá um rasante no estádio lotado até alcançar os personagens no meio da multidão. Quando o suspeito é localizado acontece uma perseguição espetacular em que a câmera voa pelos corredores e escadarias transformando-se em personagem na cena.
  • Como arrancar a confissão de um facínora. Mulheres têm seus truques para fazer os hormônios de um homem falarem mais alto.

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